O filme “O Mercador de Veneza”, de 2004,
é baseado na obra homônima de William Shakespeare, que teria sido escrito entre
1596 e 1598 (século XVI), no entanto, alguns elementos do texto, como a morte
de um mercador devido ao não pagamento de uma dívida, o teste que os
pretendentes de uma donzela eram submetidos para conquistarem o direito de
cortejá-la, a libra de carne como pagamento de uma dívida, um anel como pagamento
a um jurista por seus serviços estão
presentes também no conto “II Pecorone”, do autor italiano Giovanni Fiorentino,
publicado em Milão, em 1558. O próprio julgamento é encontrado na peça “O
Orador”, de Alexandre Syluane, publicada em 1596.
Além dos romances e da atuação jurídica, o
texto expõe a intensa segregação que os cristãos submetiam aos judeus,
colocando-os como cidadãos de segunda classe, ou pior. Os cristãos tratavam os
judeus com intolerância e ódio, os submetiam a morarem na periferia das cidades,
nos guetos, e usarem um bojo vermelho para os identificarem enquanto judeus.
Temas como intolerância, amor, ódio, usura (empréstimo a juros), vingança e
amizade estão fortemente presentes no texto.
Ambientado no século XVI, os personagens
vivem suas aventuras e conflitos. O mercador Antônio (Jeremy Rons) é um rico
comerciante cristão, mas toda sua fortuna está empregada nas navegações em
busca por mais riquezas. Ele é procurado por seu amigo Bassânio (Joseph
Fiennes) que lhe pede um empréstimo, para que possa cortejar a desejada e rica
herdeira de Belmont, Pórtia (Lynn Collins), que submetia seus pretendentes ao
teste do baú, que só se casaria com aquele que escolhesse o baú que guardava
sua imagem.
Antônio, não se encontrando em condições
financeiras favoráveis para atender ao amigo, recorre ao judeu Shylock (Al
Paccino), que sendo uma vítima, junto com os demais judeus, da intolerância e
ódio dos cristãos, empresta-lhe três mil ducados, sem cobrar nenhum ágio,
apenas, que como pagamento de multa, caso seu pagamento não fosse efetuado, de
um pedaço de sua própria carne ( uma libra de carne).
O ápice dessa obra é o julgamento que
define o cumprimento do contrato. Pórtia, disfarçada do jurista Baltazar, lhe
concede o ganho de causa, mas exige que na retirada da libra exata de carne,
não seja derramada uma só gota de sangue, pois o contrato é claro, e lhe
concede apenas a carne, não o sangue. O que acaba por pôr o judeu numa cilada
jurídica.
A reviravolta judicial, não para com a
perda da ação pelo judeu e em salvar a vida do mercador, vai além. O Estado
confisca metade dos bens do judeu e declara o mercador como guardião legal da
outra metade, até a morte do judeu, após isso, seria dado a sua foragida filha
Jéssica ( Zuleikh Robinson) e seu esposo Lourenço ( Charlie Cox), e , por fim,
a conversão ao cristianismo, que lhe pouparia a vida, o que poderia ser
avaliada por uma plateia antissemita como um “final feliz”.
O texto, considerado antissemita por
muitos pesquisadores, sempre trouxe o personagem do judeu como um vilão
rancoroso e bastante caricaturado. Essa obra serviu como ferramenta para
reforçar o antissemitismo inglês do período Elizabetano, já que os judeus
ingleses haviam sido expulsos no período medieval. Os judeus eram explorados
nas peças teatrais e obras literárias, como inimigos públicos, descritos como
avarentos, usando perucas vermelhas (uma alusão ao chapéu vermelho que
identificava os judeus). A obra de Chistopler Marlowe, por exemplo, “O Judeu de
malta”, que falava sobre o judeu Barrabás, um personagem vil e ganancioso,
porém, o mais rico e prospero habitante da ilha de Malta.
No século XVI, os judeus viviam nos
guetos, identificados com um chapéu vermelho. Para a plateia inglesa cristã e antissemita,
a edição de 1619 foi batizada como “Com a Extrema Crueldade de Shylock, o
Judeu”. O nazismo também se utilizou desse texto para propagar o ódio contra os
judeus.
O cristianismo, que prega o amor em suas
sagradas escrituras, parece não ter a mesma capacidade para exercer o amor e a
tolerância para com aqueles que não compartilham suas crenças. O respeito à
crença do outro não seria um exemplo a ser dado para que o outro também
respeite a nossa?
Concluo esse trabalho com a fala de Shylock,
que a meu ver, é um apelo pela tolerância e respeito entre os diferentes, que
não é tão diferente quanto pensa.
“Os judeus não tem olhos? Os judeus não têm
mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos
alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos ás mesmas doenças, não
se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e
o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetarmos, não
sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não
morremos? E se nos ofendermos, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos
iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende
a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofende a um
judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão?
Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de
censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.” (Ato III, Cena I).
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